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Os Budistas Acreditam em Deus?

Na cosmologia do Budismo Theravada há 31 mundos de existência dos quais 26 são habitados por divindades, (ou devas). Os 5 mundos restantes correspondem ao inferno, mundo animal, fantasmas famintos, titãs e seres humanos. O nascimento nesses 31 mundos é temporário e não há nenhum mundo onde a existência seja permanente ou eterna. Todos os seres em todos os mundos estão sujeitos ao falecimento e ao renascimento no mesmo mundo ou em algum outro. Os seres renascem em cada um desses mundos de acordo com o seu karma.

As divindades que renascem nos 26 mundos de existência possuem distintas características de refinamento ou pureza, por exemplo, os primeiros 6 mundos de divindades, depois do mundo humano, ainda fazem parte da esfera sensual, ou seja, são divindades que ainda desfrutam do prazer dos sentidos. A diferença em relação ao mundo humano é que essas divindades desfrutam mais prazeres do que os humanos, cuja experiência é uma combinação de prazer e dor. Já nos mundos seguintes as divindades apresentam gradualmente qualidades cada vez mais refinadas e purificadas, que correspondem aos estados mentais experimentados nos jhanas, que são estados mentais puros acompanhados de profunda concentração e absorção mental. Portanto, o que caracteriza as divindades de um determinado mundo são as qualidades mentais desenvolvidas e presentes na mente daquele ser. Essas qualidades mentais são provenientes da prática de ações meritórias ou da prática de desenvolvimento da mente através da meditação. Agora, através da prática dos jhanas, é possível que alguns seres desenvolvam poderes extraordinários, os poderes supra-humanos descritos em vários suttas (veja a descrição completa dos poderes supra-humanos).

Os poderes supra-humanos descritos nos suttas não incluem a onisciência. A onisciência do Buda é um aspecto controverso no Cânone. Em geral o Cânone retrata o Buda sob uma perspectiva humanista, ele é um ser humano comum, igual a qualquer outro, que através do seu próprio esforço acabou descobrindo a realidade da vida. Essa descoberta, em muitos suttas, é descrita como a compreensão dos três conhecimentos verdadeiros: o conhecimento das vidas passadas, o conhecimento sobre como o karma determina o processo de renascimento e o conhecimento da destruição das impurezas mentais. Este último é o que caracteriza a iluminação e esse conhecimento não é privilégio do Buda, pois está disponível para qualquer um. Em contraponto a essa perspectiva humanista, os comentários da escola Theravada atribuem um certo grau de onisciência ao Buda. A posição ‘oficial’ da escola Theravada, é que o Buda era onisciente mas apenas em relação àquilo para o qual ele dirigia a sua mente, ou seja, o Buda não era capaz de saber tudo de forma simultânea e precisava dar atenção para aquilo que ele queria saber (para mais detalhes veja o MN 71 e o MN 12). Essa interpretação sofreu uma profunda transformação no Budismo, especialmente com o desenvolvimento do Mahayana, que atribui ao Buda um caráter totalmente transcendental, um caráter divino, distante do ideal humanista presente no Cânone.

O capítulo a seguir - “Multiplicação de Budas e Bodisatvas” - foi traduzido de um ensaio de autoria do renomado estudioso do Budismo – Etienne Lamotte. Ele foi publicado no livro The World of Buddhism e descreve resumidamente o desenvolvimento deste tema no Budismo Mahayana.

Multiplicação de Budas e Bodisatvas
"Mesmo reconhecendo no Buda uma série de poderes e prerrogativas, os savakas, (palavra usada para descrever os discípulos do Buda e o Theravada), durante muito tempo mantiveram-no no plano humano. Eles afirmavam que ele era “consumado no verdadeiro conhecimento e conduta, bem-aventurado, conhecedor dos mundos, um líder insuperável de pessoas preparadas para serem treinadas, mestre de devas e humanos,” mas não ignoravam o fato de que, uma vez morto, ele estaria invisível para devas e humanos, e não poderia fazer mais nada por eles abandonado-os à sua própria sorte, deixando, assim, a sua Doutrina como única herança. De acordo com eles, o surgimento de um Buda seria uma ocorrência muito rara - tão rara quanto brotar uma flor numa figueira – e a humanidade permaneceria sem um guia e sem conselheiros durante longos períodos de tempo.

Um deus ‘morto a partir do seu parinibbana’ – como definido por H. Kern – poderia bastar para os monges; mas não satisfaria as aspirações populares que clamavam urgentemente por um espírito superior, um panteão, santos, uma mitologia e um culto. A vulgarização da Boa Doutrina, (Dhamma), e a sua penetração nas massas teve o efeito de transformar o ‘mestre de devas e humanos’ num ‘Deus superior aos deuses,’ circundando-o com uma multitude de divindades menores e maiores bem como poderosos discípulos. As ‘seitas’ (nikaya) ou ‘escolas’ (vada) do chamado Hinayana já tinham dado o seu suporte para esse processo de sublimação: os Sarvastivadas estofando a lenda de Sakyamuni com milagres, os Mahasanghikas colocando a sua carreira histórica no campo dos fenômenos fictícios. Como a necessidade de protetores eficazes havia se tornado mais urgente, os savakas já tinham concebido ao lado do Buda histórico, um Messias compassivo, o futuro Buda Maitreya e alguns arahants imortalizados em benefício da causa, os quais estariam sempre dispostos a vir para ajudar os fiéis.

Esses desenvolvimentos permaneceram como casos isolados no Savakayana, mas os seguidores do Mahayana não tiveram nenhuma hesitação em aumentar infinitamente o número de Budas e grandes Bodisatvas. Arrebentando os limites estreitos da velha cosmologia, o Mahayana concebeu no coração do cosmo um considerável número de universos, cada um governado por um Buda assessorado por um, ou vários, grande bodisatva. O Buda já possui a Perfeita Iluminação, enquanto que os grandes bodisatvas – aqueles do décimo estágio – estão bem ‘próximos da Iluminação.’ Exceto por essa diferença, os Budas e bodisatvas, inspirados pela mesma benevolência, convertem os seres nos seus universos e com freqüência aparecem simultaneamente em formas variadas e em distintos universos.

Sakyamuni, cuja existência histórica não pode ser duvidada, em pouco tempo veria um infinito número de pares e imitadores alinhados ao seu lado. Ele permaneceria como o mais conhecido dentre os Budas mas ele não seria mais o único. As escrituras do Mahayana mencionam muitos Budas e bodisatvas até então desconhecidos.

Dentre esses Budas, são dignos de nota: Amitabha ou Amitayus, luminoso e com tempo de vida infinito, regente de Sukhavati, o Paraíso do Ocidente; Aksobhya, o imutável, localizado no leste, no universo Abhirati; Bhaisajyaguru, o mestre médico, que também habita o leste. Os mais famosos bodisatvas são: Maitreya, aguardando no paraíso de Tusita para suceder a Sakyamuni; Avalokitesvara, que habitou o Monte Potalaka antes de manifestar-se na China sob a forma da divindade feminina Kuan-yin; Manjusri, de uma doce majestade, o bodisatva da sabedoria."

Conclusão:
É possível afirmar que, para aquelas pessoas com um entendimento mais profundo ou sofisticado dos ensinamentos Budistas, essa multitude de Budas e Bodisatvas são apenas manifestações da sabedoria e compaixão do Buda.
No entanto, parece impossível evitar que na cultura popular, menos esclarecida, os Budas e Bodisatvas acabem assumindo uma dimensão divina, que acaba caracterizando-os como Deuses Todo Poderosos, atribuindo a eles um caráter semelhante ao das religiões teístas.

fonte:Acesso ao Insight

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